O MESTRE DO TERROR: DE COLECIONADOR A PERSONAGEM DE HQ

 

Cássio Witt

        Desde a infância até os dias de hoje costumo ter um sonho recorrente, que, com pequenas variações, insiste em se repetir de tempos em tempos. É mais ou menos assim: estou andando pelas ruas de uma cidade grande qualquer e, de repente, dou de cara com uma gigantesca loja de histórias em quadrinhos, absolutamente repleta de todos os gibis possíveis e imagináveis, dos mais diversos gêneros e épocas, inclusive aqueles “sonhos de consumo” dos quais ouvi falar ou tomei conhecimento através de anúncios de outras edições, mas que até aquele momento nunca tinha tido a oportunidade de vislumbrar pessoalmente. Então fico andando, perdido por entre as prateleiras, sem saber quais HQs pegar, com uma vontade maluca de ficar horas e horas ali naquele paraíso de celulose e nanquim. Talvez para sempre.

          Sou fã de cinema (assisto filmes e/ou séries quase todas as noites), música (ainda compro, ouço e coleciono os CDs das minhas bandas favoritas em mídia física) e literatura (há tempos mantenho o desafio autoimposto – e nem sempre cumprido – de ler ao menos um livro por semana), mas são as histórias em quadrinhos que embalam meus sonhos e povoam minha imaginação desde a mais tenra idade.       

          Provavelmente seja por isso que me identifico tanto com a trajetória do analista financeiro paulistano Cássio Witt, 52 anos, que vem ganhando mais notoriedade a cada dia através da sua atuação como youtuber no canal de cultura e entretenimento “Milhas e Milhas” e, mais recentemente, como a encarnação do personagem “Mestre do Terror”. Vamos ao detalhes.

            Cássio foi iniciado muito cedo no fantástico mundo dos gibis. “Me lembro de meu pai me trazer quadrinhos Disney e Hanna-Barbera desde meus 4 para 5 anos de idade”, diz ele, “Não sabia ler ainda, mas ficava encantado, recortava os ‘bonequinhos’ para brincar”. A partir daí o amor pela Nona Arte só aumentou. “Lá pelos 8 anos mais ou menos, comecei a me apaixonar pelos quadrinhos de heróis e principalmente pelos de terror”, explica, citando as inesquecíveis edições da Editora Bloch como referência. Já na década de 80, tendo o terror como gênero preferencial, descobriu a grande qualidade e diversidade dos quadrinhos nacionais, passando a ser não apenas um colecionador, mas um verdadeiro entusiasta dos artistas brasileiros. “Eu adorava saber os nomes dos roteiristas dos quadrinhos da Vecchi, da D-Arte e da Press/Maciota”, acrescenta.

            Para Cássio os quadrinhos sempre foram muito mais do que apenas diversão. “Eles foram meus companheiros em quase todos os momentos da minha vida, desde os anos iniciais na escola, onde estavam comigo na mochila, até hoje”. Ele considera que é possível aprender muita coisa através dos gibis, mas faz questão de frisar o papel afetivo que os mesmos desempenharam em sua trajetória pessoal. “Sem dúvida o principal foi estarem sempre por perto quando eu estava triste e sozinho”, explica.

            Sobre a relevância dos quadrinhos em geral, Cássio acredita que são uma excelente forma de induzir as crianças a desenvolver o gosto pela leitura, uma ótima opção de entretenimento aos jovens e um meio para os adultos “Poderem relaxar um pouco no horário do almoço, depois daquelas reuniões pesadas e cobranças por resultados”, além do efeito nostálgico de “poderem se sentir como crianças de novo”.

            Como não é difícil de se imaginar, um adulto colecionador e fã ardoroso de gibis – algo visto pelos menos informados como destinado apenas ao público infantil e adolescente – precisa lidar seguidamente com o estranhamento e a desconfiança de conhecidos e até familiares. Cássio também precisou lidar com comentários desse teor. “Ouvi isso várias vezes ao longo da vida, mas sempre levei na esportiva, sem estresse”, confirma ele, “Acho que o meu pai era o único que me entendia nessa loucura toda, afinal, ele foi o causador de tudo”, acrescentando que atualmente seus amigos antigos já se acostumaram com suas predileções e os mais recentes possuem os mesmos gostos que ele.

            Quando entra em pauta o tema do atual mercado de quadrinhos no Brasil, o experiente colecionador é perspicaz em sua análise. “O mercado é bem diferente do que tínhamos antigamente. Não quero com isso dizer que antes era melhor ou que hoje é melhor, são tempos diferentes. No passado tínhamos muitas opções, as pencas nas bancas de jornais com preços bem acessíveis, mas com qualidade gráfica ruim, erros de diagramação e revisão. Hoje o mercado prioriza as edições luxuosas, cheias de páginas – mas os problemas de revisão continuam, mesmo na editoras gigantes – e preços proibitivos, inclusive para os adultos”.

            Tendo em vista esse contexto, Cássio expressa apreensão quanto ao cenário futuro do universo dos gibis. “Me preocupa essa atual fase pelo fato de que estamos cada vez mais distantes de chegar ao público de amanhã, as crianças”, reflete, atento ao fato de que, se não conseguir renovar constantemente a base de novos leitores, o mercado tende a se tornar cada vez mais restritivo até, talvez, ficar completamente inviável.

            Ainda sobre esse cenário, também entra em pauta o fato de que hoje em dia a forma mais usual de se adquirir quadrinhos tem sido através das lojas online, já que as bancas de jornal e as lojas físicas vêm definhando ano após ano. Será que o colecionador tradicional sente falta daquele contexto de sair à rua em busca de seus gibis? “Muita falta”, afirma Cássio, “Assim como as locadoras de filmes e lojas de CDs. Estar nesses lugares era muito mais do que comprar quadrinhos, pois tínhamos a oportunidade de conversar com amigos, trocar experiências e saber das novidades”. Mais uma vez, se evidencia o papel das HQs, tal qual da música, do cinema e de tantos outros elementos culturais, não como mero objeto de consumo, mas como fator produtor de sociabilidades e construtor de significados.

            O gibi tem o poder de catalisar sonhos e também de realizá-los. Foi assim que o leitor e colecionador Cássio Witt se transformou no personagem Mestre do Terror. “Parece brincadeira, mas eu falava para minha mãe, lá pelos anos 80, que meu sonho era virar personagem de quadrinhos”, conta ele, “Via quadrinhos dos Trapalhões, Sérgio Mallandro, Xuxa, Faustão e sonhava em ser um também, mas eu dizia que queria ser personagem na revista Mestres do Terror. Anos depois, já um senhor de 50 anos de idade, cheguei lá. Tenho um programa no meu canal do Youtube chamado TV Calafrio, em parceria com o meu amigo e editor Daniel Saks, e para ele pensei em criar uma persona, um apresentador para as introduções dos episódios e ao mesmo tempo fazer uma homenagem ao grande mestre José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Até que um dia, o artista da revista, Rubens Lima teve a ideia de usar o personagem em histórias, como uma espécie de mestre de cerimônias”, explica, “A estreia se deu na revista Calafrio nº 70 (Editora Ink&Blood Comics)”.

            De lá  para cá, seis histórias já foram publicadas contendo a participação do personagem, ilustradas por Rubens Lima, Bira Dantes e Eduardo Vettillo. Mais novidades devem chegar em breve, através do artista Lancelott Martins.

            Quando fala sobre seu seu canal no Youtube, o Milhas e Milhas – do qual o autor deste texto é um grande fã – o Mestre do Terror não esconde a empolgação. “O canal é uma grande diversão e uma forma de mostrar que os velhinhos também pode ser nerds e geeks”, explica Cássio, “Falo de muita coisa lá, desde coleções de filmes em mídia física, literatura, quadrinhos, rock n' roll e ‘nerdices’ em geral”.

            Apesar do foco na diversão, o canal é mantido nos moldes profissionais, com vídeos de domingo a sexta, sempre no mesmo horário e todos publicados como “estreia”, com a presença de Cássio no chat conversando com os inscritos.

            Ao adentrar neste tópico, temos mais uma demonstração da importância das Artes como formadoras de sentido de vida, moldadoras de perspectivas e forças de transformação, individuais e coletivas. “Foram meses, mais de dois anos, ficando sentado sozinho na frente do computador, sem ninguém estar ali comigo no chat do canal, mas hoje tenho alguns amigos que todos os dias as 19 horas estão lá”, comenta Cássio, complementando: “Nada disso que tenho feito, toda a dedicação que coloco na produção de cada um dos vídeos, não teria valor nenhum, sem as amizades que estou fazendo e pelas quais sou muito grato”.

         Se nos quadrinhos o personagem Mestre do Terror é sisudo e sombrio, seu intérprete no mundo real é afável e perseverante. “Nunca é tarde para começar nada” incentiva Cássio, “Força, vão para cima e tentem realizar seus sonhos, não importa a idade ou se você está sozinho. Eu comecei o canal sozinho, nem minha esposa me apoiou e hoje estou feliz com o resultado obtido nos últimos quatro anos e meio. Façam como o titio aqui, o Mestre do Terror, não desistam nunca, as portas hão de se abrir”, conclui.

 

André Bozzetto Junior

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Comentários

  1. Poxa André, muito obrigado esse texto tão bacana sobre a minha mania e trajetória, ter um texto deste, escrito por autor do qual sou fã, é uma realização. Não imaginava que as perguntas que eu respondi se transformariam em texto tão lindo. Obrigado meu amigo.

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  2. Cássio é o cara em quem se espelhar no universo dos quadrinhos no YouTube. É um cara apaixonado pelos quadrinhos e totalmente verdadeiro e generoso na maneira como ele conduz seu trabalho. Vi o Milhas e Milhas praticamente nascer e crescer e vou ver o Cássio e seu canal chegarem ao topo.

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