SOBRE A (MINHA) CIDADE

 

            Cada cidade possui várias versões de si mesma sobrepostas umas às outras, como as camadas de uma cebola que existem por baixo daquela visível na superfície. Materialmente, isso é reparado pelos olhos dos transeuntes mais atentos através dos aspectos materiais da paisagem circundante. Um prédio antigo que desponta entre as fachadas de outros novos e modernos para lembrar daqueles que construíram a realidade de outras épocas. Uma rua de calçamento, uma estrada de terra que resistiram ao avanço cinzento do asfalto para recordar de todos aqueles que um dia passaram por ali e se foram embora para viver em outros tempos. Uma árvore grande, moldada pelo passar das décadas, que sobreviveu à poda de suas semelhantes para testemunhar os sonhos das crianças que subiram em seus galhos, dos jovens que se beijaram na discrição de sua sombra e dos velhos que a vislumbram como reminiscência dos anos que ficaram para trás.

            Porém, ainda que essas camadas da realidade material tenham sua relevância inquestionável, elas não são as mais importantes. Acredito que as versões mais interessantes – as mais significativas – de cada cidade são aquelas que existem na memória afetiva de quem nelas viveu ou as visitou em momentos marcantes de suas trajetórias de vida.

            Hoje lá na frente da praça, entre a loja do Basso e o antigo hotel – que também já não está mais lá – só existe a fachada triste de um velho muro e os resquício de um piso de cimento, tentando se manter visível por entre a vegetação crescente. Muitos só veem o espaço vazio, o buraco da ausência, mas eu vejo mais. Eu ouço mais. Ouço o barulho das bolas de sinuca se chocando umas com as outras. Ouço a música ressoando através dos alto-falantes de um chevette estacionado ali na frente. Ouço as vozes, as piadas, as gargalhadas de vários amigos que, assim como eu, passaram boa parte das horas vagas da juventude frequentando o Bar do Fachi. “O que tinha de tão interessante lá?”, insiste em perguntar a voz do meu interlocutor imaginário. A resposta é simples: nós. Era especial porque nós estávamos lá e, às vezes, nas minhas memórias ainda estamos. Tomamos cerveja, damos risadas e depois partimos para algum baile no salão Bertotti, de Doutor Ricardo, ou talvez no Carboni, lá de Anta Gorda.

            Sabe ali onde fica o prédio do Banrisul? Quando passo lá ainda vejo uma casa branca de madeira com um pequeno gramado verdejante na frente. A casa onde vivi os primeiros anos da minha infância, a casa onde meu irmão nasceu. Ainda que o mundo material nos imponha a visão imponente do prédio, ainda que não existissem as velhas fotos guardadas para atestar a concretude do que foi um dia parte da “minha” Ilópolis, ela ainda está lá – ainda está aqui – nas minhas recordações passionais, onde ela tem mais valor do que uma mansão milionária. Porque ela é minha, e eu sou um pouco dela também.

            Por isso existem inúmeras versões – talvez infinitas – de cada cidade. Eu poderia escrever um livro inteiro sobre a minha. Na verdade, já escrevi um livro falando um pouco da Ilópolis exterior, mas aquela interior, a que levo comigo aonde quer que vou, renderia muito mais páginas.

            E a sua cidade? Aquela que existe na sua mente e habita seu coração, é parecida ou diferente daquela que está no mundo exterior? Na verdade, não importa. Eu tenho certeza que a “sua” Ilópolis, com seus sonhos, suas expectativas, suas esperanças – e tudo aquilo que você já foi, que você é, e que você ainda será – é a melhor de todas. Porque você está nela, e estará para sempre.

 

André Bozzetto Junior

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