O FIM DAS BODEGAS

 

                Acredito que quase todo mundo que já circulou pela miríade de pequenos municípios espalhados pelo interior da região Sul do Brasil já ouviu a respeito de algum deles frases do tipo: “A única coisa que tem naquele lugar é bodega!”.

            Embora possa ter significados ligeiramente distintos em outros locais, no Rio Grande do Sul e pelo menos em parte de Santa Catarina “bodega” é geralmente tido como sinônimo de “boteco” ou “botequim”, um bar de aparência simplória, que muita vezes remete à estética dos estabelecimentos populares de várias décadas atrás, com ambientação tipicamente interiorana ou, na melhor das hipóteses, suburbana.

            Algumas dessas bodegas fazem o estilo “armazém”, vendendo um pouco de tudo, desde bebidas alcoólicas – muitas vezes artesanais – até certos tipos de comidas, roupas, calçados, utensílios domésticos, produtos agrícolas e diversos outros artigos muitas vezes tidos até como “pitorescos”. Porém, esse tipo de estabelecimento já se tornou muito raro e quase não é mais visto por aí. A outra modalidade – igualmente em processo de extinção – é a que tem se convencionado chamar de “bodega raiz”, mais singela, e que basicamente se limita a vender cachaça, vinho e cerveja barata.

            Nesses ambientes é comum se encontrar mesas de sinuca e espaços destinados a jogos de cartas. Alguns têm em anexo até cancha para jogos de bochas.

            O perfil do público frequentador costuma ser eclético e nada elitizado. A bodega é onde o trabalhador para a fim de tomar uma cervejinha gelada depois do expediente; onde o aposentado vai jogar cartas e se inteirar das novidades com os amigos; onde o homem do campo aproveita para tomar um trago quando vai para a cidade; onde o bêbado que já circulou por vários outros bares vai para beber a “última saideira” antes de encerrar a noite; onde os retardatários vão comprar a bebida que faltou na festa, depois que todos os outros locais já fecharam.

            A bodega é, portanto, o espaço de socialização de muitos daqueles que não frequentam outro tipo de estabelecimento – por limitações financeiras, por não se sentirem à vontade em ambientes diversos, ou simplesmente por entenderem que é ali que se desenvolvem as relações que lhes interessam. Não obstante, é lugar de memórias e de construção de identidades.

            Contudo, esse tipo de estabelecimento está com os dias contados. As bodegas estão se extinguindo – em um processo que pode ser lento e até invisível aos olhos daqueles que só enxergam o que está em seu próprio nível – e em algum momento vão se acabar. Algumas fecham porque o proprietário falece ou não tem mais condições físicas de seguir trabalhando, e seus herdeiros não demonstram interesse em levar o negócio adiante. Outras são transformadas – por terceiros, nunca pelo dono original – em espaços “modernizados” ou “gourmetizados”, que afastam a clientela tradicional, pelos preços proibitivos dos produtos ou pela perda de referência das características habituais. Mas, creio que o fator mais agressivo na derrocada das bodegas seja a especulação imobiliária.

            Edificações antigas – como são as que geralmente abrigam esse tipo de empreendimento – estão sendo adquiridas e demolidas pelas construtoras em um ritmo cada vez mais intenso para dar lugar a prédios modernos, que descaracterizam a paisagem tradicional e repelem seus frequentadores costumeiros ao comportar estabelecimentos mais caros e elitizados.

            “Ah, mas isso é evolução, é progresso!”, dizem alguns. E então eu pergunto: essas transformações geram o progresso de quem? Se para o favorecimento de alguns é privado a outros até o pouco que eles têm, então a palavra que me vem à mente não é “evolução”, mas sim “exclusão”. Na verdade há um nome mais apropriado para esse processo: gentrificação, como muito bem observou um leitor aqui do Voz da Rua, que está em Pinhalzinho há pouco tempo, mas que perspicazmente já percebeu que nossa cidade está “na crista da onda” desse movimento, atualmente tão difundido em municípios de todos os tamanhos pelo Brasil afora.

            O fato então é que até nos locais onde “só têm bodegas”, há o risco de nem isso ter mais. Se no lugar delas haverá espaços “instagramáveis” e a quem eles estarão acessíveis, é algo que só o tempo – e o dinheiro – irão demonstrar.

 

André Bozzetto Junior

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NOTA: As fotos que ilustram esse texto são de “bodegas raíz” de Pinhalzinho cujas edificações já se encontram fechadas e irão para o chão em breve.         

Comentários

  1. Isso mesmo Andre, muito bem explicado, tudo isso aconteceu nos locais longe e perto das cidades. O problema é que os grandes comércios acabam engolindo os pequenos.

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  2. Parabéns pelo texto, Andre! Tema altamente pertinente. Esses registros fotográficos me fizeram pensar na possibilidade de tombamento desses verdadeiros patrimônios. A questão são os interesses "privados" que envolvem isso aí.

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