AQUELE BOM FIM NÃO EXISTE MAIS

 

São 23 horas de um sábado do ano  de 2008.  Desço de um ônibus na Rua José Bonifácio e parto em direção à Avenida Osvaldo Aranha. Cruzando pelo Mercado Público do Bom Fim, noto que não há nenhum bar aberto, como há dez anos era normal neste horário. Atrás do Mercado está o parque de diversões fechado. Antes ali havia um campo aberto onde jovens se reuniam para beber, tocar violão e fumar maconha. Atravesso a Avenida Osvaldo Aranha e rumo em direção à Rua João Telles. No caminho, espio para dentro da Lancheria do Parque. Poucas pessoas e pouca fumaça, somente da chapa preparando os lanches. A porta encontra-se semi-fechada. Lembro de quando eu ficava no bar até ele fechar, o que acontecia às vezes por volta das duas da madrugada ou mais. O número de frequentadores noturnos diminuiu muito depois que foi proibido o consumo de cigarro dentro da Lancheria. Logo à frente, vejo um estacionamento onde antes funcionava o cinema Baltimore. Recordo de Além da Linha Vermelha, último filme que assisti ali na companhia de apenas duas pessoas. O ingresso era barato. Eu comprei na Lancheria um Bib’s para comer durante a sessão e depois tomei algumas cervejas no Bar do João, que também está fechado. Sem nem mais o letreiro e o toldo que alimentavam a esperança de vê-lo novamente aberto. Na esquina pessoas bem arrumadas fazem fila para entrar no Bar Ocidente.

Por cinco anos morei próximo ao e no bairro Bom Fim. Frequentei por muito mais tempo os seus bares. Gastei muitas noites no Bar do João, na Lancheria do Parque, no Ocidente, no Lola, no Megazine, no Elo Perdido, no Escaler, etc. Passei muitas tardes dos finais-de-semana e feriados no seu parque Farroupilha, mais conhecido como Redenção. Como morador, usei suas ruas para ir ao banco, à parada de ônibus, ao trabalho, ao cinema, à universidade e como caminho paras todos os meus triviais compromissos cotidianos. Durante este período que vivi no bairro acompanhei muitas transformações sociais e físicas. Tantas que, no final, já não reconhecia o lugar que escolhi como meu bairro. No último ano em que residi no Bom Fim já não existia mais a maioria dos bares, das pessoas, do movimento noturno e o cinema Baltimore virou uma pilha de escombros. No começo do século XXI, a imagem do cinema demolido incomodou muito aos seus antigos frequentadores. Durante anos, muitos filmes foram vistos por eles ali e comentados nos bares vizinhos. Um lugar de cultura foi substituído por um de proteção de carros. O projeto inicial para o espaço deixado pelas ruínas do cinema era a construção de um centro comercial para atender aos moradores de classe média do bairro e arredores. Porém, a obra foi interrompida devido a um acidente ocorrido durante a demolição do antigo prédio. Uma das paredes do cinema que fazia divisa com o Bar João dava sustentação à parte da estrutura do bar. Quando a primeira parede foi derrubada, a segunda se viu ameaçada. Devido a esse acidente, o bar também foi interditado. Os embates judiciais entre as partes envolvidas na questão se arrastaram por muito tempo. No mesmo período, outro bar do bairro foi fechado, o Escaler, após muito tempo de brigas do dono do estabelecimento com a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio e com a Associação dos Amigos do Bairro Bom Fim. Para muitas pessoas estes acontecimentos não têm nenhuma importância, afinal bares abrem e fecham o tempo todo. Porém, o fim desses bares reduziu bruscamente o movimento noturno no bairro e encerrou um momento da história da cidade.

A partir da década de 80, o Bom Fim havia sido invadido, muitos bares abriram e muitas pessoas começaram a ir ao bairro. Durante a década de 1980 e 1990, o bairro abrigou uma pluralidade de práticas sociais e serviu de espaço de ação livre para jovens de toda a região metropolitana. Ali se produziram e consumiram músicas ruidosas, filmes em oito milímetros sobre o cotidiano urbano, fanzines. Os jovens andavam pelas ruas, calçadas, bares e pelo parque usando roupas com nome de bandas, coloridas, pretas, rasgadas, cabelos espetados, desgrenhados, longos, raspados. As noites e as festas não tinham hora para acabar e o consumo de drogas era intenso. Discutia-se política, também, além de arte, música, cinema, contracultura. Ocorreram muitos shows. As principais bandas de rock de Porto Alegre fizeram suas primeiras apresentações lá. A cara do Bom Fim mudou muito nas últimas duas décadas do século XX e, consequentemente, Porto Alegre se transformou. A figura do magrinho do Bom Fim, o sotaque e as gírias do bairro tornaram-se características típicas do jovem porto-alegrense.

A partir do final da década de 1980, começou a haver uma fiscalização mais rígida nos bares feita pela prefeitura, uma maior repressão policial e uma mobilização da associação de moradores contra a boemia do bairro. Nos últimos anos, muitos frequentadores dos bares fechados migraram para o bairro Cidade Baixa e os donos dos estabelecimentos precisaram buscar outras formas de sustento. Somente a Lancheria do Parque e o Bar Ocidente continuaram a funcionar à noite, porém foram obrigados a fazer modificações para se ajustarem às exigências da SMIC e da Associação de Amigos do Bairro Bom Fim.

 Aquele Bom Fim não existe mais. Existe um bairro Bom Fim, mas ele não é o mesmo usado como cenário de filmes, onde aconteceram shows e manifestações políticas, não é o mesmo Bom Fim que foi personagem de músicas. Algo sumiu ali.

 

Lucio Fernandes Pedroso

 

 

NOTA 1: Este texto é um excerto da introdução da Dissertação apresentada pelo autor no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em História, no ano de 2009. O download do arquivo em PDF com o trabalho completo pode ser feito no seguinte link: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/18359

 

NOTA 2: A fonte da imagem que ilustra este texto corresponde ao seguinte link: https://soundcloud.com/humanista-ufrgs-373480295/radiodoc-i-40-anos-do-bar-ocidente-patrimonio-e-formacao-cultural-de-porto-alegre 

 


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