A BODEGA DO MEU AMIGO - UM BRINDE À MEMÓRIA

 

            No grande filme que relata a nossa trajetória, os cenários existem para destrinchar os enredos, para embasar o complexo quebra-cabeça que compõe a nossa existência. E estes enredos, por sua vez, constituem as obras-primas dos personagens, os protagonistas e coadjuvantes que, com suas pequenas histórias, consolidam a Grande História da qual todos fazemos parte.

            A bodega do meu amigo era um cenário importante por causa da nossa presença, coadjuvantes recorrentes dos enredos cotidianos que lá se delineavam. Nós frequentávamos o local porque era divertido, mas só era tão divertido por causa do nosso amigo, o bodegueiro, verdadeiro protagonista deste cenário.

            Eu já comentei em outro texto que ele era famoso pelas frases inusitadas que comumente levavam todos que ouviam às gargalhadas. O mistério sempre foi tentar saber se essas frases eram espontâneas ou propositais. Talvez um pouco de cada. Pode ser que originalmente eram espontâneas e depois viraram bordões frequentemente repetidos até se tornarem lendários. Um exemplo: quando alguém dizia ou fazia alguma bobagem, o bodegueiro rapidamente acusava o indivíduo de ter “um cérebro a menos”. Desconfio que, a princípio, ele quis dizer “um parafuso a menos”, como na gíria popular, mas, não adianta, virou clichê instantâneo. No nosso grupo de amigos, até hoje alguém é acusado, eventualmente, de ter um cérebro a menos. Às vezes o próprio autor da frase.

            Lembro da vez em que, sabendo que eu trabalhava com música, o bodegueiro pediu para que eu gravasse um CD para deixar rodando lá como som ambiente. A explicação que ele me deu quando pedi que músicas queria que eu gravasse nunca mais vai sair da minha memória. “Tem que ter um pouco de tudo, porque, tu sabe, aqui no meu bar vem tudo que é tipo de gente”, argumentou. “Pode colocar uns sertanejos, umas bandinhas e também essas que estão tocando no rádio, tipo dos Béc Dig Céus (Nota do Tradutor: Back Street Boys), daquela filha do Chirtãozinho e do Xororó, a Sandy Junior, e pra vocês que são do roque, coloca umas tipo daqueles Gânzes Roses, a Chuchái Mai Lái (NT: Sweet Child O’ Mine)”. Até hoje me arrependo de não ter feito uma cópia para mim daquele CD. Só pela nostalgia.

            Mais do que em qualquer outro ambiente que eu já tenha frequentado, lá o bodegueiro era a alma do lugar. Tanto que, quando ele decidiu vender o negócio, foi o início do fim do estabelecimento. Houve outros proprietários, mas a clientela caiu, o local entrou em franca decadência até que foi definitivamente fechado e posteriormente demolido.

            Hoje no local onde ficava a bodega do meu amigo só se vê uma parte do piso de cimento, como se fosse uma fresta por onde se vislumbra através da película da História os vestígios daquilo que já não existe mais. Bem ali do lado, onde havia outro prédio histórico, agora só há um buraco – o buraco da ausência.

            É por isso que eu escrevo textos como este. Como uma forma de resistência contra o apagamento do passado. Sejam relatos, crônicas, lendas urbanas ou causos do folclore popular, o objetivo é dar algum sentido de permanência àquilo que corre o risco de ser aniquilado pelo esquecimento. Se já não podemos mais vislumbrar, que possamos ao menos lembrar.

 

André Bozzetto Junior

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